1 POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: Como a Lei 10.639/03 chegou ao Brasil e à capital de Santa Catarina. Isabela Testoni Vieira1 Camila Souza Betoni2 Resumo: Este artigo tem como finalidade apresentar a trajetória da Lei 10.639/03, que visa a obrigatoriedade de inserir nos currículos o ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Para isso, mostrou-se essencial explorar a sua relação com a teoria da democracia racial brasileira, entendida aqui como mito e ideologia. Visando entender o motivo de ter sido necessário a existência de uma lei obrigando as escolas a se aprofundarem na cultura africana e afro-brasileira. Tais culturas que também fazem parte da história e de uma grande parte da população brasileira. Abordando o envolvimento do Movimento Negro para a elaboração da lei como projeto, antes de ser sancionada, a pesquisa passa para a revisão de como a lei chegou na capital de Florianópolis e como ela está sendo aplicada nos documentos da Rede Municipal. O trabalho segue na sua conclusão, apresentando a importância que o Movimento Negro teve nesses processos de mudanças e conquistas na educação para a população negra. E que por conta da desigualdade pertencente em nosso país se tornou necessária a Lei nº 10.639/03, elencando que a implementação da mesma precisa ocorrer de verdade no cotidiano escolar. Mas para que isso ocorra é necessária uma formação continuada aos docentes sobre a Educação das Relações Étnicorraciais, tão importante na docência, quanto para discentes das graduações em licenciaturas. Palavras-chaves: Lei nº 10.639/03, democracia racial, movimento negro. 1 INTRODUÇÃO Em um país em que os espaços de poder são majoritariamente dominados pela população branca, a presença da população negra - que se deu por muitas lutas e conquistas - é um ato de resistência. Para ocupar esses espaços é preciso construir um olhar para se ver e se sentir pertencente na sociedade. As universidades são um espaço onde a produção de saberes é racializada, ou seja, faz com que a presença da população negra seja limitada, essa população que está sendo e sempre foi produtora de ciência e que recentemente vem buscando ampliar sua presença como sujeitos pesquisadores. É partindo destas conquistas que apresento esse Trabalho de Conclusão de Curso. Ele é um ponto de chegada de uma trajetória carregada pelas narrativas, vivências e produções de conhecimento traçados ao longo do curso de Pedagogia na Universidade do Estado de Santa Catarina. Como pedagoga em formação, mulher negra e filha de pais também negros, parto do panorama da escrevivência, termo cunhado pela escritora e intelectual Conceição Evaristo, onde ela indica que: 1 Artigo apresentado ao Curso de Pedagogia como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Pedagogia da Universidade do Estado de Santa Catarina, no ano de 2022. 2 Professora orientadora 2 Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que se pode evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada. (2007, p. 21, grifos da autora) Este trabalho tinha por objetivo inicial um aprofundamento no percurso traçado pela Lei Nº 10.639/03 no município de Florianópolis, abordando como a Lei chegou na cidade e a influência no movimento negro sobre sua efetivação. Tal lei foi sancionada em 9 de janeiro de 2003, pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, sucedendo a alteração da Lei Nº 9.394/1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB). Essa alteração, disposta no Art. 26 – A da supracitada lei, torna obrigatória a inclusão no currículo escolar, do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira nas escolas de todo o território nacional. Outra alteração encontra-se no Art. 79 – B, assegurando o Dia Nacional da Consciência Negra – 20 de novembro – nos calendários escolares. Vale ressaltar, que em 2008 a Lei Nº 10.639/03 foi novamente alterada, agora pela Lei Nº 11.645/08, não só obrigando as escolas a terem a História e Cultura Africana e Afro - Brasileira, como a agregar em seu currículo a História e Cultura Indígena. Este estudo baseou-se na estratégia qualitativa de pesquisa com o caráter exploratório, por meio da técnica de pesquisas bibliográficas, apresentando artigos, teses e livros para aprofundamento no tema. Comecei esse trabalho fazendo fichamentos dos textos e livros sobre a lei em questão. Porém, no decorrer dessas primeiras leituras acabei me deparando com uma questão anterior a própria implementação da lei, isso é, o contexto racista brasileiro que fez com que uma lei como essa fosse necessária. Aqui encontrei uma série de autores e autoras que foram de fundamental importância para a discussão e acabaram por ampliar os objetivos da pesquisa. O trabalho, apresentado na forma de artigo, está dividido em três partes. Em sua primeira parte, apresento a minha vivência na infância, trazendo a minha experiência na minha época escolar até a minha graduação, sabendo que meu processo escolar e a aprovação da Lei 10.639/03 andaram juntos. E abordo quem foram as pessoas que me ajudaram nesse processo de me reconhecer e me aceitar como mulher negra. Dando sequência, abordo sobre o mito da democracia racial e como essa ideologia é vista pela nossa sociedade, abordando junto como essa ideologia afetou e ainda afeta na educação brasileira e um pouco sobre como isso afetou a criação dos currículos escolares. Só então, sigo para a contextualização da Lei 10.639/03, trazendo a sua trajetória e apresentando como ela foi sancionada no país. Direciono a discussão para o estado de Santa Catarina, apresentando a influência do movimento negro perante as questões educacionais. Meu foco de pesquisa se torna o município de Florianópolis, abordando nessa parte como se deu a regulamentação e como essa obrigatoriedade da Lei é exibida nos documentos municipais da educação básica. Apresento também quem foram as pessoas e organizações que ajudaram na formulação desses documentos somando a Educação das Relações Étnicorraciais (ERER) nos currículos da Rede. Com tudo isso apresentado, pretendo alcançar meus objetivos que são aludir um pouco sobre a contextualização desta lei e como ela deve ser pensada além da educação. Após tudo isso, trago a minha conclusão do que foi alcançado e do que ainda falta ser dito, pesquisado. 3 É preciso destacar que a Lei 10.639/03 e minha experiência escolar andaram juntas. Assim que iniciei minha vida escolar, em 2004, a lei começou a ser implementada por todo o Brasil. É a partir desta trajetória, que coincide no tempo histórico, e do meu pertencimento negro na família, que surgiu o interesse em pesquisar sobre o assunto. Retomo aqui o sentido de escrevivência, formulado por Conceição Evaristo (2007), e comentado por Gislene Silva (2015) a partir da percepção do sujeito que “é capaz de se formar a partir da apropriação do seu percurso, ou seja, da sua história de vida, uma vez que o que foi vivido, ao ser narrado, torna-se experiência que vai nos ajudar a saber fazer, a tornar-se". (p.111). Me vejo neste lugar de sujeito em elaboração e, por isso, devo apresentar para este texto a vivência que me constitui como mulher negra, filha de pais negros e jovens que construíram e lutaram muito para que eu pudesse chegar até aqui e ser quem eu sou hoje. Minha mãe, mulher negra e batalhadora, sempre buscou quebrar com o imaginário subordinado à mulher negra. Esse imaginário de acordo com Marcondes et al. (2013) é forjado como resultante de uma tríade constituída pelo racismo, sexismo e colonialidade, que mantém as mulheres negras na base da pirâmide social e que afeta as subjetividades, que são construídas socialmente baseadas em estereótipos e mitos distorcidos de subalternidade. Submetida a esses mitos que atravessam a sociedade brasileira, eu, como criança negra, sempre me deparei com a exclusão social, causada justamente pela desigualdade de caráter histórico e social, que faz com que crianças e adolescentes sofram preconceito e sejam sistematicamente excluídos de determinados espaços, por conta da cor da pele e da classe social. Não me foram mostradas representações positivas de pessoas negras na mídia, nas escolas e livros didáticos. Ainda assim, tinha um modelo de representatividade em minha mãe. Meu pai, trabalhador desde os quatorze anos para ajudar no sustento da família, cresceu e ainda vive em uma sociedade atravessada pelo racismo estrutural, conceito que trabalharei mais à frente a partir de Almeida (2019), onde a discriminação estética e social voltada para o homem negro é gigante. O homem negro em nossa sociedade é marginalizado, seu corpo carrega marcas da violência, e das visões dos que se sentem acima dele. Meu pai, que passou por muitas situações complicadas, carrega consigo hoje cabelos com dreads, símbolo de ancestralidade, mas que é muitas vezes visto como sinal de “desleixo”. Nas suas idas e vindas trabalhando como modelo, o julgamento era constante, a imposição para que ele se enquadrasse em um padrão sempre acontecia; queriam mudar seu jeito de andar, vestir, e modo de falar. Foi a partir desses julgamentos que ele decidiu que deveria desistir dessa área, pois ficou constante a insistência em fazer com que ele se aproximasse esteticamente e na sua forma de ser ao padrão normativo europeu. Foi com esse pertencimento familiar que minha construção e resistência foi se constituindo. Na maioria das escolas que frequentei, eu fui a única menina negra em sala. Me parece que as referências bibliográficas que dialogavam com as diretrizes da ERER na época eram escassas. Ou ao menos, não chegavam aos trabalhadores da educação básica com os quais eu tive contato. Meus professores não manifestavam a necessidade de abordar em sala temáticas em torno da cultura africana e afro-brasileira. Como única criança negra nesses espaços, não encontrei representatividade, os assuntos em que eu poderia me ver eram vagos. Minha primeira experiência em sala de aula foi em 2004 numa pequena escola particular na capital do Paraná e nela eu fui muito bem recebida. Sendo a 4 única menina negra na escola toda, as professoras me chamavam de pérola negra. Fui o centro das atenções nas apresentações temáticas da escola, pois eu não sentia vergonha de nada, fazia tudo com vontade e com sorriso no rosto. Após essa experiência, tive que me desfazer desse sentimento de estar em foco, pois foi na entrada do Ensino Fundamental I que eu comecei a experienciar o preconceito. Sofria no caminho da escola até em casa, ofendiam o meu cabelo, a forma como eu agia. Mesmo com a Lei já implementada e dando respaldo a obrigatoriedade do conteúdo, posso dizer que vi muito pouco sobre a história e cultura africana e afro- brasileira nas escolas que frequentei. As abordagens nunca foram além das marcas da escravidão - o que soube é que nossos ancestrais foram obrigados a deixarem suas terras para trabalhar e servir aos senhores. Naquela época as referências literárias e cinematográficas que abordam esses temas eram vagas, em diversas vezes ouvi a história A menina bonita do laço de fita3. As opções de representatividade mostradas a mim eram escassas, com isso criar a minha própria identidade positiva de menina negra foi um desafio. Atualmente esse acervo de obras cresceu e agora contamos com uma grande opção para os futuros e atuais docentes usarem e abordarem as diretrizes da ERER em sala de aula. Fui me descobrindo ao longo do meu ensino médio, onde o interesse em leituras e filmes sobre pautas raciais e violência contra negros cresceu. Participei de um projeto escolar, que tinha como foco problematizar a violência contra a mulher, e minha parte foi abordar o feminismo com foco principal na especificidade das violências vividas pelas mulheres negras. Sempre tive paixão por crianças, meu ingresso no curso de pedagogia se deu pela minha inscrição no Sisu (Sistema de Seleção Unificada), e foi ali, de semestre em semestre, que encontrei a área certa para mim. Como falado anteriormente, a permanência na academia é algo vitorioso, e eu chegando até esse momento, me sinto orgulhosa, onde eu posso elaborar tudo o que já vi e contextualizei ao longo da graduação. Passei a frequentar a escola quando a Lei Nº 10.639/03 já tinha sido sancionada. Quase vinte anos depois, estou aqui para dizer o quanto a minha experiência com a ERER na educação básica foi pouco efetiva. É imprescindível questionarmos o porquê em nosso país foi e é preciso ter uma lei, obrigando as escolas particulares e públicas a inserirem no currículo o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. E para responder, é fundamental falarmos sobre a desigualdade racial que estrutura a sociedade brasileira, bem como as ideias que a sustentam. São elas que indicam também os motivos pelos quais, possivelmente, a implementação prática da lei ainda encontra obstáculos. 2 DESMISTIFICANDO A DEMOCRACIA RACIAL BRASILEIRA Grande intelectual do movimento negro brasileiro, Abdias do Nascimento (2016) define o que supostamente seria uma democracia racial como um cenário em que “pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência, sem nenhuma interferência.” (p.48). Ou seja, democracia racial é um conceito que só caberia a um país totalmente sem racismo, preconceito ou discriminação. Sendo assim, e percebendo a nossa sociedade, 3 Livro infantil escrito por Ana Maria Machado e publicado originalmente em 1986. Sua protagonista principal é uma menina negra. 5 trataremos essa ideia de democracia racial no Brasil como uma ideologia. Isso é, uma ideia que opera no sentido de esconder a realidade política, social e econômica de desigualdades, justificando a manutenção da dominação. Essa ideia de uma democracia racial brasileira, foi elaborada a partir das experiências de escravidão e do período pós-abolição (1888). O Estado, junto das elites, buscou argumentos para ratificar a existência dessa suposta democracia. Um desses recursos argumentativos, apresentava o africano como co-colonizador do Brasil, ou seja, eles também eram responsáveis pela colonização. Assim mostravam que o negro, estava inserido entre os senhores quase que de forma igualitária, usando como exemplo as amas negras (consideradas mães de todos), que educavam e amamentavam os filhos de seus senhores. Outro exemplo de suposto sucesso dessa convivência pacífica, seriam as festas e eventos em que a dança africana era aplaudida. Nascimento cita Verger, ilustrando a articulação desse tipo de argumento, que nega a existência do racismo no processo de constituição do Brasil. Se é verdade que os escravos foram europeizados através do contato com seus senhores, é igualmente verdade que o mesmo senhor português em retorno sofreu um processo de africanização através do contato com seus escravos, (VERGER, 1977, p. 09 apud NASCIMENTO, 2016, p. 67) Mas não é apenas com essas demonstrações de interação que existiam entre os escravizados e senhores que podemos anular o sofrimento que os negros tiveram enquanto escravizados, bem como as relações de desigualdade e violência. Os negros foram encaminhados para servirem seus senhores cultivando e cuidando de suas terras, o trabalho braçal e trabalhos domésticos eram todos feitos pelos africanos escravizados. O empreendimento escravocrata envolvia grande investimento. Em relação a esse processo, Portugal promoveu para o estrangeiro um discurso sobre a escravidão no Brasil como algo civilizado, benévolo. Entretanto, a desumanização era evidente. Nascimento (2016, p. 69) cita as: Deformações físicas resultantes de excesso de trabalho pesado: aleijões corporais consequentes de punições e torturas, às vezes de efeito mortal para os escravos - eis algumas características básicas da “benevolência” brasileira para com a gente africana. Isso posto, os escravizados sofreram extrema violência, desde o momento que foram sequestrados de suas terras, e com as mortes na vinda dos navios negreiros. Sendo vendidos e abusados, os escravizados tinham um certo prazo de produtividade, com excesso de trabalhos pesados, depois de, em média sete ou oito anos, eles já não serviriam mais. Sendo assim, “tão barato se conseguia escravos que mais fácil e econômico era substituí-los por outros quando imprestáveis, do que cuidá-los e alimentá-los de forma adequada.” (NASCIMENTO, 2016, p. 70). Para provar que o Brasil podia ser considerado um território onde havia benevolência para com os escravizados, eles integravam a cultura africana na sociedade. Muitas vezes, os senhores davam o domingo para os escravizados “aproveitarem” como quisessem, o que depois se somaria aos argumentos da democracia racial. Muito esforço foi feito para romantizar a escravidão, reforçando entre os brancos a ideia de inexistência do preconceito. Para a efetividade dessa construção narrativa, é preciso apagar os processos de conflito e resistência que ilustram a 6 recusa dos escravizados a essa “humanização” que as elites brancas tanto pregavam. A resistência vinha em muitas formas: por meios de queimas das casas dos senhores, atentados, fugas e mesmo o suicídio e o banzo, que na época era conhecida como uma depressão, uma morte lenta causada por uma recusa a submissão à desumanização imposta pelo empreendimento escravocrata. Um meio importantíssimo nesse processo de recusa foi a resistência via aquilombamento. O quilombo mais famoso na época, e ainda conhecido atualmente, foi o Quilombo dos Palmares (1630-1697), que abrigava os escravizados que cometiam as fugas, indígenas e até mesmo os não - negros que viviam na pobreza do país. Ainda que Palmares seja lembrado nos currículos escolares, poucas vezes essa experiência é tratada de acordo com a sua grandeza. De forma semelhante, a escravidão não é muito abordada pela via da resistência da população negra. Esse apagamento é importante para sustentar a democracia racial como mito. Quando observamos o passado, podemos perceber que eram as elites brancas que tinham o controle da circulação de informação, por onde iriam passar as informações, a quem essas informações chegariam. Sendo esse grupo aquele que detém a força e o poder no país, também é ele que define os valores e as ideias predominantes. As ações da população negra eram cerceadas pela ação dessa elite branca, que só consentia a liberdade dentro de limites determinados por ela. Por exemplo, poderia se fazer festa nos finais de semana, mas não abrir um jornal, pois até hoje, o medo branco é que o negro tenha voz ativa na sociedade. Antes da abolição acontecer, por conta dos atos de resistência, algumas leis foram sendo criadas aos poucos. A Lei do Sexagenário (1885), tinha o intuito de ceder a liberdade aos escravizados com mais de 60 anos, [...] aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacitada produtiva - eram atirados à rua, à própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”. Não passava, a liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassínio coletivo. (NASCIMENTO, 2016, p.79, grifos nossos) Ou seja, um assassinato em massa, pois não foi concebido nenhum amparo para esses senhores libertos. O Estado não se responsabilizou em disponibilizar acesso aos mesmo para que pudessem garantir moradia ou sustento digno, com isso a sobrevivência passou a ser difícil. Na Guerra do Paraguai (1864 até 1870), o governo ofereceu alforria a alguns escravizados em troca do alistamento, já sabendo o risco que eles correriam indo para a guerra, e mais uma vez notamos o processo de extermínio do povo negro. A abolição oficial da escravatura aconteceu com a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Ela foi apresentada como uma lei do Brasil livre, onde todos os negros escravizados estariam livres de todos os tipos de abuso e trabalhos pesados que tinham sidos submetidos durante esses 388 anos. Ainda que tenha sido comemorada como conquista do movimento abolicionista, a lei não foi seguida de nenhuma política reparatória. A falta de acesso à educação e à terra, deixou os recém libertos à mercê do trabalho compulsório novamente, trabalhos com poucas remunerações e extremamente precarizados. Essa realidade marca até hoje o local ocupado pela maioria da população negra no mercado de trabalho. 7 Ainda assim, persistiu o mito da democracia racial brasileira, promovendo o Brasil como um exemplo a ser seguido. Rastros dos anos de escravidão foram apagados, para o esquecimento do quão ruim foi esse momento aqui no Brasil. Ruy Barbosa, ministro da fazenda em 1890, sancionou uma circular que ordenava queimar todos os documentos históricos relacionados ao comércio de escravos. Em tal caso, é por isso que não conseguimos ter os dados precisos de quantos negros realmente foram enviados para cá, e quantos morreram nos navios negreiros. À vista disso, para dizer que o país tinha sim uma democracia racial, era preciso queimar a história em um sentido mais amplo. A obra Casa Grande & Senzala (2003), de Gilberto Freyre, é um marco essencial na construção do discurso da democracia racial, dando ênfase na positividade que teve o processo da miscigenação em sua centralidade para a formação do país. Nessa obra o autor aborda as famílias brasileiras já compostas por esse processo de mestiçagem, na qual as unidades domésticas eram formadas pelos senhores, seus bastardos e os agregados. Entretanto, os negros só permaneciam nessas casas/famílias como parte da mão de obra, via trabalhos domésticos ou nas lavouras. Portanto, Freyre (2003) romantiza a boa convivência “familiar brasileira” sustentada pela escravidão. Mesmo apresentando a positividade da mestiçagem, é claro que a desigualdade ainda permanecia enraizada, na qual o negro é obrigado a prestar serviços em troca de moradia e alimentação. O autor apresenta o país como um modelo de democracia racial, mostrando que tudo foi resolvido pela via da miscigenação, como comentado anteriormente, mostrando a família como unidade colonizadora do país, e que aqui, não existe separação de raças. Em um trecho de sua obra Freyre (2003, p. 217) cita: Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêem mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas: quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro.” (p. 217) Sendo assim, para apresentar o país democraticamente racial, seria apenas preciso mostrar o quanto a união dos brancos e pretos só aumentou após a abolição, e que agora se pode viver harmoniosamente, trocando experiências como cita o autor acima. Indica novamente o processo de mestiçagem, que teve por consequência corrigir esse distanciamento entre raças e, com isso, promover a democratização racial no país. As mulheres negras e indígenas sofreram muito com esse processo, pois o principal meio para a mestiçagem era fazendo filhos. Freyre (2003, p. 70-71) descreve como, segundo ele, esse processo ocorria: Foi misturando-se gostosamente com mulheres de cor logo no primeiro contato e multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numerosos. Em Casa Grande & Senzala, o autor apresenta a mulher no tempo da escravidão e pós abolição. As mulheres negras e “mulatas”, não recebiam a honra do casamento. Citando um ditado popular evidentemente racista da época, Freyre (2003) repete que a “branca era para casar, mulata para f… e negra para trabalhar.” (p. 72) O autor usa bastantes palavras ofensivas nesse trecho ao falar o papel da 8 mulher na sociedade, a romantização do estupro é muito presente em sua obra, podemos notar nesse seguinte trecho, como o estupro era visto como algo comum, “O furor femeeiro do português se terá exercido sobre vítimas nem sempre confraternizantes do gozo.” (FREYRE, 2003, p. 133), ou seja, em sua fala podemos perceber o quão esse processo de mestiçagem foi doloroso para as mulheres indígenas e negras, a violência sexual contra elas nesse período foi muito grande, sendo forçadas a praticarem atos sexuais. É notável, a rejeição que os negros sentiam, os brancos os excluíam do seu círculo familiar, em que “o homem negro e a mulher negra só podem penetrar de forma sub-reptícia, pela porta dos fundos, como criminosos e como prostitutas.” (NASCIMENTO, 2016, 76) Ou seja, vendiam essas mulheres a fim de lucrar em cima da prostituição, pois no tempo da escravidão e pós, elas eram vistas como um objeto de prazer para os brancos, e as mulheres negras tinham a mão de obra barata. Os homens negros foram sendo vistos como arrogantes e brutais. Pensando em tudo isso, a democracia racial é uma idealização positiva se ela fosse realmente empregada na nossa sociedade. A separação entre pretos e brancos não existiria, todos teriam acesso às mesmas oportunidades, acesso à educação e à saúde digna e igualitária, sem distinção de qualidade. É importante pensarmos então que, a democracia racial e o racismo estrutural se tornam inimigos um do outro, sendo coisas totalmente diferentes. Em um país racialmente democrático, o racismo estrutural não existiria. É assim também que a dominação não ganharia força, o negro poderia exercer as suas ações sem precisar da força maior que é o branco, a voz do negro também teria um papel ativo e igualitário na sociedade. Então sim, a democracia racial é uma idealização positiva, um mundo onde se é bom viver e conviver, um país harmonioso. Na década de 1950, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), patrocinou uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil, uma vez que o país promovia seu modelo de democracia racial internacionalmente. Porém, os diagnósticos sobre a população negra, produzidos pelos levantamentos de dados do projeto, mostravam a extrema desigualdade racial que existia em nosso país. Fazendo com que esse mérito de carregar o exemplo de um país democraticamente racial, caísse por terra. Agora podemos nos questionar, abordando os pensamentos de Gilberto Freyre, se para ele e outros intelectuais a democracia racial estava realmente presente, por que os índices indicavam desigualdades? O que o Estado brasileiro estava fazendo de errado? A quem deveria ser atribuída a responsabilidade? A resposta dos defensores da democracia racial brasileira é de que, após a abolição, todos passaram a ser iguais perante a lei. Volto aqui ao argumento de que o negro é o principal causador das coisas ruins do nosso país. Ou seja, é por causa deles que o desemprego estaria em alta, pois o Brasil oferece múltiplas oportunidades de emprego. A exclusão no mercado de trabalho seria culpa do próprio negro, que não teria interesse nos estudos. Para o Estado e as elites é mais estratégico responsabilizar a própria população negra pelos seus problemas. É por esse motivo que as reparações históricas começaram tão tardiamente no Brasil, a ideologia da democracia racial brasileira faz com que erros não sejam reconhecidos, problemas sejam negados e, por consequência, não solucionados. É assim que partiremos para a análise do racismo como um fenômeno estrutural e atual. Para isso andaremos lado a lado com as discussões do autor Silvio Almeida, que em sua obra titulada Racismo Estrutural, publicada em 2019, apresenta o mito da democracia racial em sua atualidade. Para dar início a nossa 9 discussão cabe destacar a diferença que Almeida (2019) marca entre os conceitos de preconceito e discriminação racial. A discriminação é o tratamento diferenciado que as instituições, incluindo o Estado, tem sobre uma determinada raça, impedindo, por exemplo, o acesso a espaços e direitos. Já o preconceito racial “é o juízo baseado em estereótipos de indivíduos que pertencem a um determinado grupo racializado.” (ALMEIDA, 2019, p. 22). Um exemplo de preconceito é generalizar, como dizer que todo negro é violento, sujo, inconfiável, ou que todo judeu é cainha. Sendo assim, observa-se que, diferente do preconceito, a discriminação “tem como requisito fundamental o poder, ou seja, possibilidade efetiva da força.” (idem, p. 23). O autor destaca a existência da discriminação positiva, que passa a “corrigir ou compensar a desigualdade social” (p. 23), tendo como exemplo as ações afirmativas que têm o objetivo de oferecer a igualdade de oportunidades para todos. Por fim, o autor conceitua o racismo (que tem a raça como fundamento), como uma maneira de discriminação, que se manifesta por meios de práticas negativas impedindo os não - brancos de serem reconhecidos como humanos, produzentes de cultura, história etc. Esse termo como alude Almeida (2019) está engatado ao modo em que ele é usado, então por trás da raça há sempre um elo de poder e decisão. Com esses conceitos formulados, podemos abordar a seguir como o mito da democracia racial é analisado perante aqueles que só reconhecem o racismo como um fenômeno individual. Para estes, o racismo é um desvio de conduta que pode ser combatido na lei, ou seja, o indivíduo que pratica, deve ser penalizado legalmente. Aqui o racismo é identificado apenas quando se manifesta explicitamente, em situações em que indivíduos ou grupos de pessoas brancas são racista em relação a um indivíduo ou um grupo composto por negros. Com isso, se aborda o argumento de que a sociedade não é racista, mas sim as pessoas. No fim das contas, quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de bem”. (ALMEIDA, 2019 p. 37) Tendo em mente o conceito e a formação da consciência de alguns indivíduos, o racismo sob a perspectiva individualista é muito mais frequentemente percebido pelas pessoas da nossa sociedade, pois se dá de forma explícita. Ele não é um fenômeno velado, porém só é perceptível para quem tem esse conceito formado em sua consciência, portanto, quando um negro é ofendido em público e nas redes sociais, torna-se prático o reconhecimento dessas atitudes racistas. Essa visão sobre o racismo pode existir junto ao mito da democracia racial, uma vez que vê manifestações racistas como exceção em uma sociedade democrática (e não como regra). Para concluir sobre a nossa pergunta no início da discussão sobre democracia racial, traremos aqui, análises de como a leitura do racismo como fenômeno estrutural se opõe a essa ideologia. Silvio Almeida indica as práticas racistas de um indivíduo e das instituições para explicar que o racismo existe pela forma como a nossa sociedade é estruturada, ou seja, um racismo naturalizado e normalizado, isso é, que opera na própria normalidade social, assegurando a permanência das desigualdades entre brancos e negros. E apenas tornar os atos racistas crime e apresentar a representatividade, não é suficiente, uma vez que: 10 Ainda que essencial, a mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaços de poder e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista. A ação dos indivíduos é orientada, e muitas vezes só é possível por meio das instituições, sempre tendo como pano de fundo os princípios estruturais da sociedade, como as questões de ordem política, econômica e jurídica.” (ALMEIDA, 2019, p. 49) As pessoas que se autodeclaram pretas e pardas são a maioria da população brasileira, somando 56,2% de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios4 (Pnad) do IBGE de 2019. Mesmo sendo maioria, é revoltante saber que não estão presentes nos espaços de poder no país, Cabe observar que Sueli Carneiro, filósofa e militante histórica do movimento negro brasileiro, em sua participação no podcast Mano a Mano, apresentado pelo rapper Mano Brown5, relembra que a categoria negro como junção dos que se autodeclaram como pretos e pardos, cresceu em adesão nos levantamentos do IBGE como resultado da militância do movimento negro no sentido de valorização e pertencimento da população. Ainda precisamos de permissões para realizar nossas ações na sociedade. É por muita luta que conseguimos ter voz no país, mas ainda assim, essa voz é frequentemente ocultada e não chega a quem precisa. Carneiro (2022) aborda a seguinte discussão, eles "têm medo de uma consciência negra de fato”. Portanto, eles ainda ocultam as nossas vozes, por ter medo da força que teremos perante a sociedade. Museus estampam os sofrimentos dos escravizados, alguns livros didáticos demonstram imagens de torturas feitas na época da escravidão, pensando em tudo que nos é mostrado, pensar o Brasil como um país atualmente democrático racial é acreditar em fantasia. Se somos pertencentes igualitários a essa sociedade, por que não nos é ofertado os mesmos direitos e as mesmas possibilidades? Isso posto, percebe-se que a democracia racial é uma falácia, essa ideia torna-se inexistente em nosso país e é por meio das lutas, que o movimento negro tenta fazer com que a nossa sociedade se torne antirracista, e é aos poucos que a mudança vai acontecendo. É por essas lutas, que estamos conquistando espaços que também são nossos por direito. Dando continuidade, veremos como esse mito de democracia racial influencia na nossa educação básica brasileira. As reparações históricas se deram de modo tardio aqui no Brasil, começando apenas no início do século XXI, sendo um dos seus maiores símbolos a adoção de cotas raciais como forma de ingresso nas universidades públicas. É justamente por conta desse processo de reparação ter levado muito tempo para acontecer, que vemos a dificuldade da população negra de ingressar e permanecer na academia. Tendo em mente essa dificuldade, é preciso entender como está a educação antes desse ingresso. A evasão escolar no Brasil, entre a população negra tem um índice muito significativo. Dados recolhidos pela Pnad Continua em 2019 apontam que 71,7% dos jovens que abandonam a escola são negros (pretos e pardos). A maioria abandona os estudos por precisar trabalhar, e é assim que muitos não chegam nem perto de conhecer a universidade. É pela evasão escolar, pela desigualdade social que no Brasil a população preta e parda tem a porcentagem de analfabetos três vezes maior do que a 4 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2012-2019. 5 Podcast Mano a Mano, publicado no dia 26 de maio de 2022, produzido pelo Spotify, MugShot e Boogie Naipe < https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr > Acesso dia 8 de jun. 2022 11 população branca. De acordo com os últimos dados recolhidos pelo IBGE6 em 2018, 8,9% dos pretos e pardos com 15 anos ou mais eram analfabetos, contrastando com 3,6% dos brancos na mesma faixa etária. Dos idosos, com 60 anos ou mais, autodeclarados pretos e pardos no país, 27,1% eram analfabetos. Com esses dados conseguimos perceber o quanto somos deixados de lado na formação da sociedade. O quanto nos deixar sem estudo e formação é primordial para o dominador branco continuar comandando o Brasil. Essa exclusão, entretanto, não se dá apenas no acesso ao sistema de ensino. Há também uma exclusão simbólica dos negros na escola, que se dá pelo seu apagamento nos currículos. É sobre essa forma de exclusão que se debruça a lei que comentarei a seguir. 3 O PERCURSO DA LEI Nº 10.639/03 Podemos agora perceber que a Lei nº 10.639/03 chegou após uma grande luta da população negra. Essa lei é fruto de uma conquista que acontece gradativamente em nossa sociedade. O movimento negro foi a principal organização social a se adentrar na temática da ERER. Sendo assim, o movimento apresenta as questões educacionais como um dos seus focos principais para fazer a diferença em uma sociedade estruturalmente racista. Essas organizações diversas, que formam o movimento, começaram com o objetivo e ainda têm seu foco pautado na luta contra a discriminação e preconceito no Brasil. Suas pautas carregam o intuito de inserir positivamente o negro na sociedade, buscando melhores condições de vida para essa população. Porém de “todas as violências às quais a população negra tem sido submetida, a exclusão do sistema educacional é, certamente, uma das mais perniciosas formas de ferocidade.” (MÜLLER, BAÍA, 2013, p. 32). Isso posto, observamos que essa forma de exclusão tem consequências amplas, entre elas está a dificuldade de inserção nos postos de trabalho mais bem remunerados. Em sua maioria, encontramos a população preta e parda alocada em trabalhos pesados, pouco prestigiados, de baixa remuneração e que não oferecem muita perspectiva de ascensão. Em conformidade com a pesquisa realizada em 2018 pelo IBGE7, os negros eram 60,8% dos trabalhadores da agropecuária, 63% das construções civis e 65,9% no serviço doméstico. A população negra ocupa esses cargos com baixa remuneração principalmente pela falta de oportunidade escolar. Porém mesmo essa população apresentando no currículo o ensino superior completo, ainda assim, ocupam cargos que não pedem o seu diploma. De acordo, com um levantamento feito pela consultoria IDados, divulgado pelo G18, no primeiro 6 Informação recolhida da página do Centro do Doutorado Paulista, publicada em 2020 https://www.cpp.org.br/informacao/noticias/item/15578-ibge-analfabetismo-entre-negros-e-tres- vezes-maior#:~:text=Segundo%20os%20dados%2C%20no%20ano,chegou%20a%2027%2C1%25. Acesso em jun. de 2022 7 Dados recolhidos do acervo do Jornal Correio Braziliense. Notícia escrita por Isadora Martins e Luiz Oliveira em 2019. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/trabalho-e- formacao/2019/11/17/interna-trabalhoeformacao-2019,807077/negros-ocupam-cargos-com-menor- remuneracao-no-mercado-de-trabalho.shtml Acesso em jun. de 2022 8 Notícia escrita por Luiz Guilherme Gerbelli, publicada em 10 nov. 2020. https://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2020/11/10/negros-com-ensino- superior-tem-mais-dificuldade-para-encontrar-trabalho-qualificado.ghtml Acesso em 06 jul. 2022 12 trimestre de 2020, 37,9% dos homens negros e 33,2% das mulheres negras ocupavam cargos que exigiam menos do que a sua qualificação9. Sendo assim, podemos notar um círculo vicioso entre as pessoas negras, onde o crescimento socioeconômico pessoal apresenta uma certa dificuldade. A educação e os estudos não são apreciados como deveriam, ou seja, o acesso à educação para pessoas não brancas ocorre de uma maneira limitada. Em seu artigo, Lucimar Rosa Dias (2005, p. 53) nos exibe motivos para as questões de raça entrarem como discussões no âmbito educacional no contexto de debate intelectual dos anos 60. Os educadores da época reconheceram que era preciso dar ênfase nessas discussões. Porém não tornaram a discussão o foco central da defesa da escola para todos. Portanto, tais argumentos ficaram sem encontrar espaço para permanecer: Infelizmente nenhum dos educadores que se destacaram na defesa da escola para todos rompeu com o acordo da elite brasileira de tratar a questão racial na generalidade e não como política pública, apesar da inclusão da raça como recurso discursivo. Compactuam com o mito da democracia racial, mantendo invisível a população negra da escola para “todos” defendida com tanto entusiasmo no debate para a aprovação da LDB de 1961. Nos anos 80, o movimento negro teve grande crescimento após a redemocratização, se radicalizando. Com isso, as críticas à educação brasileira começam a aparecer de forma mais contundente ao lado dos debates que marcam esse processo. Respaldado por essas críticas, e na época sendo deputado federal (mandato de 1983 a 1987), Abdias do Nascimento apresentou à Câmara um projeto de lei pensado na inclusão do ensino de História e Cultura Africana e Afro- brasileira na Educação Fundamental, Ensino Médio e Educação Superior; Tal projeto, similar ao que observamos atualmente na Lei 10.639/03, não contou com a aprovação na época. Em 1988, foi o ano de comemoração do centenário da abolição da escravidão. Foi nesse mesmo ano que ocorreram manifestações do movimento negro pelo País inteiro, denunciando as limitações do processo de abolição. muitas lideranças foram formadas e as mobilizações e as já mencionadas articulações políticas construídas pelo movimento negro em diferentes âmbitos (com sindicatos, partidos políticos, instituições públicas e organismos do Estado nos níveis municipal, estadual e até federal, com representantes no Poder Legislativo etc.) tornaram possível a conquista de um novo lugar político e social para o movimento negro, especialmente no campo educacional. (PEREIRA, 2016, p. 25) Uma década depois, em 1995, ocorreu a Marcha Zumbi dos Palmares, no qual protestavam contra a desigualdade racial e o racismo. Deu-se então, a criação de uma proposta de ação intitulada Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial. Nesse programa as ações pensadas para a educação continham as seguintes propostas: 9 Percebe-se o quanto as ações afirmativas são importantes para a sociedade, porém somente isso não é eficiente, se o racismo estrutural é o que prevalece em nosso País. 13 • Implementação da Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino. • Monitoramento dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União. • Desenvolvimento de programas permanentes de treinamento de professores e educadores que os habilite a tratar adequadamente com a diversidade racial, identificar as práticas discriminatórias presentes na escola e o impacto destas na evasão e repetência das crianças negras (EXECUTIVA, 1996, apud SANTOS, 2005, p. 25). Um ano após a Marcha, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) passou por uma reformulação, decretando no Art. 4º ser dever do estado ofertar um ensino igualitário, obrigatório e gratuito para todos10. Incluindo também no Art. 26 parágrafo 4º que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas, raças e etnias para a formulação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia.”. Só esse reconhecimento na LDB de 1996, mostra o quanto a ideologia da democracia racial ainda estava presente nessas mudanças. A LDB, acredita no reconhecimento de todas as raças e etnias, porém não considera e não dá ênfase nas questões da população indígena e negra de forma específica. Isso é, não reconhece a necessidade de medidas reparatórias. O movimento lutava por uma educação antirracista e não foi isso que ocorreu na mudança no Art. 26, § 4º. Limitando novamente o acesso e o apagamento da população negra à sua cultura. Ainda buscando a aprovação do projeto de Lei, anteriormente apresentado por Abdias do Nascimento, o Movimento Negro contava com uma participação limitada na Câmara, que como todo os espaços de poder é, e continua sendo ocupado por uma maioria branca absoluta. Somente a senadora Benedita da Silva (mandato de 1995 a 1998)11 estava presente e defendeu a aprovação da Lei, com essa limitação a aprovação foi negada novamente em 1995, "com justificativa de que uma base nacional comum para educação tornaria desnecessária a existência de uma garantia exclusiva para a temática”. (GONÇALVES E SILVA, 2000, p.357 apud MÜLLER, BAÍA 2013, p. 36). Quem formulava a LDB, não achava necessária a ênfase da temática (história e cultura africana e afro-brasileira) nos currículos da educação. O Movimento Negro continuou lutando, pois, sua leitura era de que a população negra continuava não contemplada nessa nova formulação da LDB. Foi só em 2003, no mandato do ex-presidente Lula, que o projeto de Lei nº 259/1999 elaborado pelos deputados federais, Esther Grossi (professora de matemática e pesquisadora na área da educação) e Euridio Ben-Hur Ferreira (na época deputado federal e militante do movimento negro de Mato Grosso do Sul), foi aprovado. 10 Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Título III. Do direito à educação e do dever de educar. Em 2013, o Art 4º passou por uma reformulação apresentando agora a obrigatoriedade do ensino às crianças de quatro anos de idade até os 17 anos, separando o ensino em Pré-escola, Ensino Fundamental e Ensino Médio, e incluindo a educação infantil gratuita para as crianças de até cinco anos de idade. 11 Benedita da Silva, nascida no Rio de Janeiro em 1942, foi vereadora do Rio de Janeiro em 1983- 1986. Foi senadora pelo Rio de Janeiro em 1995-1998 se tornando a 1ª senadora negra no Brasil. Atualmente ocupa o cargo desde 2011 de Deputada Federal do Brasil. Nesse tempo como deputada foi a idealizadora da chamada “PEC das domésticas”, incluindo em seu relatório da Pec 478/2010, 16 direitos aos trabalhadores domésticos. Que contou com a aprovação somente em 2013. Uma conquista significativa aos trabalhadores domésticos, que tinham a sua função desprezada e discriminada pela sociedade. 14 Tornado se assim a Lei 10.639/03. Tal projeto, como comentado na introdução, alterava os artigos 26 e 79, da Lei 9.394/96. (DIAS, 2005) Um ano após a alteração dos Art. 26 e 79 da LDB de 96, é homologado a Resolução do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno nº 01/2004 contendo o Parecer CNE/CP nº 03/200412, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico - Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana. Tal parecer é relatado por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que por indicação do Movimento Negro foi conselheira da Câmara de Educação de Superior do Conselho Nacional de Educação (mandato 2002-2006). Müller e Baía (2013, p. 37) citam que: Nesta perspectiva, a escola passa a ser concebida como um lugar prioritário de formação de identidades e os Governos como responsáveis pela formação continuada de Professores. Além disso, exige uma relação estreita e sistemática entre Governos federais, estaduais e municipais, uma vez a regulamentação exprime ações, e, portanto, políticas públicas, que devem ser acompanhadas pelos Conselhos Municipais e Estaduais e pelas Secretarias de Educação para fazer com que aconteça a implantação e a implementação da Lei nº. 10.639/03, logo a LDB. Ou seja, é dever do Estado assegurar que a Lei seja implementada em todos os municípios do país, e que ocorra a elaboração da mesma nas escolas. Podemos assim então contextualizar e mostrar que a implantação de uma lei é quando ela é aprovada e começa a existir, já a implementação é garantir que essa lei passe a ser executada na prática (nesse caso, nas salas de aula). Podemos então considerar a Lei nº 10.639/03 como: [...] um ponto de chegada de uma luta histórica da população negra para se ver retratada com o mesmo valor dos outros povos que para aqui vieram, e um ponto de partida para uma mudança social. Na política educacional, a implementação da Lei nº. 10.639/2003 significa ruptura profunda com um tipo de postura pedagógica que não reconhece as diferenças resultantes do nosso processo de formação nacional.” (BRASIL, 2004, p. 32 apud. MÜLLER, BAÍA, 2013, p. 38) É assim que iniciamos nossa discussão sobre o caminho percorrido pela Lei na capital de Santa Catarina. Após a abolição da escravatura, em 1888, o sul do Brasil passou a concentrar uma grande população de imigrantes, resultado sobretudo da política do Estado de embranquecimento da população. Os colonizadores portugueses vieram para o Brasil, pensando em tornar o país uma Europa nos trópicos (Carneiro, 2022), e nisso a população negra não fazia parte desse projeto. Ainda no Sul do Brasil, isso fica evidente pela maior concentração de imigrantes europeus. O Brasil teve 353 anos de escravidão, gerações nasceram e morrerem com essa cultura do negro ser o serviçal de graça. A abolição da escravatura não foi fácil de ser instaurada em nossa sociedade, fazer com que o branco reconheça que o negro não pode mais servi-lo de graça era algo irreal para eles. Pois em sua cabeça a escravidão era algo comum, seus avós, tataravós tiveram escravos, porque de 12 Parecer relatado pela Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, aprovado em mar. 2004 com a Resolução CNE/CP nº 01/2004 publicada dia 17 de jun. 2004 http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf > Acesso em 02 de jul. de 2022 15 uma hora para outra, falando metaforicamente, isso deixou de acontecer. A escravidão deixou de figurar como regime legal de submissão após a Lei Áurea, ter sido sancionada em 13 de maio de 1888, pela princesa Isabel. Desse modo, o Brasil sempre fez com que a cultura africana e indígena fosse apagada. O modo de viver considerado como ideal sempre foi o modo europeu, e em Santa Catarina essa cultura predomina, por conta das famílias colonizadoras do estado e dos sucessivos processos de apagamento da presença indígena e negra. Essa política de embranquecimento é o principal processo de seleção dos indivíduos ao trabalho, à educação e à cultura. Em Santa Catarina, o Movimento Negro se via e ainda se vê muito presente em diversos municípios do estado. Em um levantamento que o Professor Doutor Ivan Costa Lima realizou, existiam em 2009 cerca de 21 organizações ativas que se tem registro na documentação existente na época e dados que as imprensas locais relatam. Há muitas outras espalhadas por aí que ainda não foram documentadas. (LIMA, 2009) O município de Florianópolis, por ser a capital de Santa Catarina, concentra a maioria das organizações do Movimento Negro, na década de 80 essas organizações começaram a ganhar voz. Segundo Lima (2009) é nesta mesma década que a Sociedade Cultural Antonieta de Barros surge, visando denunciar a opressão do negro no município de Florianópolis. Tal organização homenageou a professora e jornalista Antonieta de Barros (1901-1952), primeira mulher negra a assumir o cargo de Deputada Estadual no Brasil (mandato de 1935 a 1937). Após a queda do Estado Novo, se candidatou e foi eleita novamente a Deputada Estadual (mandato de 1947 a 1951) e continuou sendo a única negra e mulher a ocupar a Casa Legislativa Catarinense. Corroborando com o autor citado acima, Domingues (2011) apresenta um pouco sobre as ações que essa organização realizou. Sendo coordenada por Osvaldo Silveira, em novembro de 1980 seus ativistas realizaram um ato público em comemoração ao Dia Nacional da Consciência Negra em Santa Catarina. Em 1986, surge na cidade o Núcleo de Estudos Negros (NEN), fundado por militantes, universitários e simpatizantes da luta antirracista. Ativo até os dias de hoje, o “NEN procurou se diferenciar de outras organizações, ao propor discutir sobre o papel das instituições públicas como reprodutoras das desigualdades raciais.” (LIMA, 2016, p.7) O núcleo começou com três grandes comissões de atuação; a de Justiça e Desigualdade Racial, no qual buscava atender a população vítima de violência racial; o Programa de Mulheres, que promovia políticas públicas pensando no gênero e na raça; e, por último, o Programa de Educação, que tinha o intuito de capacitar docentes a compreender as relações raciais presentes na sociedade e nas escolas. As intervenções educacionais produzidas pelo NEN, começaram atendendo docentes, alunos e as escolas públicas em momentos delimitados, como por exemplo, em datas comemorativas. Porém o assunto sobre a ERER ocorria apenas nesses momentos em que o núcleo estava nas escolas. O NEN, então, achou pertinente redirecionar a ação para uma formação continuada aos professores. Os debates na educação, nessas ações, tiveram o foco em pensar na evasão e na quantidade de crianças negras que repetiram de ano no sistema de ensino. “E, posteriormente debates ligados ao papel do professor/a e os instrumentos necessários para sua ação educativa, como forma de superação do preconceito e da discriminação presente na escola.” (LIMA, 2016, p. 9) O papel do professor é fundamental para a mudança no ensino acontecer, porém nessa época poucos materiais e recursos didáticos pensados a partir dos 16 princípios da ERER eram disponibilizados a esses docentes. Pensando nisso, o NEN criou o projeto Piloto Escola em 1991, no qual levava aos professores da rede municipal de Rio do Sul, um momento para discutir a luta contra o racismo. Muitos docentes apresentaram dificuldades em abordar sobre o assunto em sala de aula. Nesse projeto, os professores apresentaram os fatores que, segundo eles, causam essa dificuldade: “[...] falta de material didático, não conhecimento de formas didáticas e pedagógicas para a aplicação dos conteúdos e falta de preparação em discutir racismo, discriminação e preconceito racial.” (LIMA, 2016, p. 9) O Programa de Educação, ofertado pelo NEN, nesse momento começou a pautar no seu trabalho as formações continuadas de professores e visava inserir o a ERER nos currículos escolares. A formação de docentes foi se ampliando, até que, em 1994, o vereador Márcio de Souza, militante e pesquisador que atuou em prol das questões raciais (CARDOSO; CARDOSO, 2016), elaborou uma lei que inclui o conteúdo de “História Afro - Brasileira” nos currículos da Rede de Florianópolis, pensando na educação infantil até o ensino fundamental, se tornando a Lei Municipal nº 4446/94. Um marco histórico de pertencimento e resistência do povo negro no município. Entendemos que o NEN foi uma organização fundamental, que garantiu condições melhores para a população negra. Pensando no campo educacional, foi um dos principais movimentos que lutaram para uma formação continuada dos professores sobre a luta antirracista. Antes mesmo da Lei 10.639/03 revigorar, o estado já tinha sancionado, como comentado anteriormente, a Lei Municipal nº 4446/94: “[...] pautando que disciplinas como Estudos Sociais, Geografia e História deveriam valorizar a cultura afro e abordar aspectos da história afro-brasileira de modo amplo, através da concepção histórico- crítica.” (SANTOS, 2018, p.60) Desse modo, em Santa Catarina, o Movimento Negro se antecipou no quesito de pensar práticas antirracista na educação através de alterações no currículo. Em 2005, com a Lei Nacional já promulgada, a Secretária Municipal de Educação criou o “Programa Diversidade Étnico - Racial”, que busca construir políticas de ações afirmativas, pensando no racismo e na desigualdade racial no estado. Como por exemplo, o programa possibilita diversas estratégias para uma formação continuada de professores, através de cursos, oficinas etc. Assim como tem o intuito de adquirir materiais pedagógicos voltado para a área do ERER, materiais esses que possa ser usado com as crianças, os jovens e os adultos da EJA (Educação de Jovens e Adultos) Outra política que o programa financia e sendo uma das mais importantes é o “Seminário de Diversidade Étnico-Racial da Rede Municipal de Florianópolis", que no ano passado realizou a sua 15ª edição. Tal seminário contou com rodas de conversas, palestras e a formação continuada da ERER para os docentes das unidades educativas da rede. Aberto a todos os professores e pesquisadores que queiram se aprofundar mais no assunto. (GAUDIO, CARVALHO, 2022) Desde a década de 90, a elaboração dos documentos pautados ERER, foram e são preparados em conjunto com os docentes que atuam integralmente nas Unidades Educativas de Florianópolis e com os profissionais da Secretária Municipal de Educação (SME). Ainda assim, alguns foram trabalhados juntamente com alguns docentes e pesquisadores das universidades colaboradoras da SME. Nessa mesma década, a Rede Municipal de Ensino de Florianópolis junto com o Movimento Negro, procurou ofertar formações continuadas para os professores, apresentando atividades pedagógicas para melhor execução das temáticas da ERER. Desse modo, de acordo com as pesquisas realizadas por 17 Carvalho (2016), foram disponibilizados 32 cursos de formação continuada, neles buscavam-se as trocas de ideias entre os profissionais e aprofundamentos e conhecimentos teóricos sobre o assunto. Diante disso, as ações promovidas pela RMEF a respeito das questões étnico-raciais não possuem um fim em si mesmas, mas sim, ao admitir o racismo como estrutural e estruturante da sociedade, assumem a responsabilidade da educação pública em superar as desigualdades raciais. (GAUDIO, CARVALHO, 2022, p. 232) Os Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) são formulados por esses documentos citados a seguir, com eles teremos um norteador para que a Rede Municipal de Ensino de Florianópolis favoreça o debate sobre a promoção da igualdade racial: Proposta Curricular Rede Municipal de Ensino Florianópolis (2008); Diretrizes Educacionais Pedagógicas para Educação Infantil. (2010); Orientações Curriculares para Educação Infantil de Florianópolis (2012); Currículo da educação infantil da rede municipal de ensino de Florianópolis (2015); Diretrizes Curriculares para a Educação Básica da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis / SC (2015); Proposta Curricular da Rede Municipal de Ensino de Florianópolis (2016); Matriz Curricular para Educação das Relações Étnico-Raciais na Educação Básica (2016). Uma pesquisa realizada na Creche do Morro da Queimada, pelo Professor e Doutor Paulino Cardoso e pela Professora da Secretaria Municipal de Florianópolis Cintia Cardoso (2016), visava averiguar o andamento da implementação da Lei nº 10.639/03 nos documentos oficiais da unidade. Eles perceberam que no documento orientado pela Resolução n. 03/200913, as questões voltadas à raça não estavam totalmente ocultas. Porém, notaram que faltava um meio para abordar a educação voltada para a luta antirracista: [...] embora palavras como diversidade, identidade, religiosidade sejam citadas ao longo do documento. Assim, interpretamos esses termos como palavras-padrão para a produção de um discurso universal, visto que os documentos normativos nacionais não aparecem ao longo do texto. (CARDOSO; CARDOSO, 2016, p. 124) Como fazer uma pedagogia antirracista, se o próprio documento que orienta os docentes nos planejamentos não traz alusão a ERER? Os professores então notaram, com isso, que o assunto da implementação ocorria de forma informal na creche e não de acordo com as diretrizes firmadas no texto da lei. Fica evidente que os docentes têm total interesse na implementação efetiva da referida Lei, para que a mesma se destine a cumprir o regulamentado. Paulino e Cintia Cardoso (2016) fizeram um levantamento no Plano de Metas Anual da Rede e descobriram que não existe qualquer ação voltada para a superação da desigualdade racial na unidade educativa. Ou seja, a lei na Creche do Morro da Queimada, no ano que eles realizaram a pesquisa, não estava devidamente implementada. 13 Fixa normas para a elaboração dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) e do Regimento das Instituições de Educação integradas ao Sistema Municipal de Ensino do Município de Florianópolis. Disponível em https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/cme-florianopolis-sc-05-04- 2018-11-23-18-0c60a61bfa194f7d3f6b4d5c9954dbc0-5faf0d671adf6- pdf?query=ensino%20b%C3%A1sico Acesso em 12 jul. 2022 18 Muito foi feito pelo Movimento Negro nas questões educacionais pensando na população negra florianopolitana. Um dos documentos que mais engloba práticas pedagógicas voltada a todos os espaços da Rede Básica do Município, é a Matriz Curricular para a Educação das Relações Étnico - Raciais na Educação Básica (2016). Tal documento foi formulado por Jeruse Maria Romão, professora e mestra em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina e integrante da primeira geração do NEN de Santa Catarina, juntamente com professores, auxiliares, diretores da rede municipal e com a Secretaria Municipal de Educação. O documento conta com uma breve apresentação, uma introdução a ERER, e após é dividido em três capítulos, são eles: uma contextualização da matriz, onde apresenta o que é a ERER, a quem e para quem é a matriz; em seu segundo capítulo é abordado sugestões para os docentes aplicarem a ERER, dos bebês até a educação de jovens e adultos; por fim, o capítulo três apresenta referências da temática da ERER, como por exemplo, filmes, documentários, literaturas etc. O mesmo é de fácil acesso a todos e tem como objetivo, ajudar os docentes na construção das atividades pedagógicas, pensando na diversidade étnica e que possa respeitar o sujeito e sua integralidade. Busca “romper com a ideia de que as questões étnico-raciais são responsabilidades do Movimento Negro e/ou de pesquisadores/as que abordam o tema” (GAUDIO, CARVALHO, 2016, p. 234). A partir do momento que se torna uma obrigatoriedade, é dever de todos tornar a ERER uma política que integra os projetos institucionais das Unidades de Ensino. Portanto a ERER não é uma política somente para os negros ou para sujeito nenhum, se os negros não estiverem fisicamente presentes. A ERER é para todos e traz centralidade em torno de um sujeito e seus conteúdos como forma de equilibrar as relações sociais. (FLORIANÓPOLIS, 2016, p. 22). Esse é o mais recente documento sobre a temática aqui no município de Florianópolis, é um documento com uma visualização colorida, trazendo imagens, relatos e que por ser um documento esses apontamentos tornam a leitura mais leve e tranquila. Notamos que as organizações que compõem o movimento negro, em todo o país, figuram como o principal ator social, ontem e hoje, na luta pelo pertencimento da população negra na sociedade. Suas discussões pensadas no âmbito da educação proporcionaram grandes melhorias no quesito das políticas de ações afirmativas. Mas esse movimento não foi desde o início com essa visão, de acordo com Gomes (2019), o movimento negro na década de 80, tinha o discurso universal, porém notaram que as políticas públicas de educação, não atendiam grande parte da população negra. O discurso, foi então mudado, passando a ser uma demanda real e radical. Com isso muitas políticas de ações afirmativas têm tido êxito no nosso país. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, o mito da democracia racial está muito presente em nosso país, tanto que é o motivo que responde à pergunta feita no início deste trabalho. É por esse mito que se tornou necessário uma Lei obrigando a termos o ensino da História Africana e Afro-Brasileira. Essa lei é uma reparação histórica, igualmente como as cotas raciais. 19 Mesmo após 19 anos da Lei 10.639/03 e com os avanços que já tivemos, Santos (2018) apresenta que há muitos desafios ainda a serem percorridos. E que a escola ainda segue cultivando práticas racistas da nossa sociedade. Concluo a partir das análises dos documentos e das leituras sobre o estudo da implementação em Florianópolis, que a letra da lei por si só não garante a implementação, é preciso que ela aconteça na prática, no cotidiano escolar. A ERER, tem o objetivo de fazer com que as crianças e os jovens se reconheçam a partir do patrimônio histórico, da sua cultura, religião, das múltiplas linguagens. O Parecer nº CNE/CP 003/2004 afirma que: [...] a escola, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação (BRASIL, 2004, p. 07). Aqui em Florianópolis, os estudos sobre a implementação da lei são muito vagos, artigos pouco voltados à prática pedagógica nas escolas referente a ERER. Na minha graduação a ERER apareceu como uma disciplina obrigatória, porém contendo poucos créditos para um bom aprofundamento da temática. Fui saber da existência de um núcleo de pesquisa, por uma colega do meu pai, que tem como parente a coordenadora do núcleo. Ingressei no Núcleo de Estudo Afro-brasileiro (Neab) em época de pandemia. Foi com as minhas participações nas ações que me aprofundei mais na temática. Sinto que, ainda que seja uma lei nacional: [..] percebe-se a pouca inserção desses conhecimentos na formação docente que acontece nos cursos de licenciaturas, evidenciando que se firmou nessas áreas um referencial analítico que não integra a dimensão racial como estruturante das relações sociais e das desigualdades. (PASSOS, 2014, p. 178) A ERER é uma temática que deve ser mais aproveitada na academia, os assuntos são passados rapidamente. Às vezes, como cita Müller (2013) e Baía (2013) esse é um dos motivos que há uma resistência por parte dos docentes em se envolver mais a fundo na temática, na graduação não se tem tanto contato e quando chega à docência se tem menos ainda. Foi desafiador realizar essa pesquisa com referências bibliográficas limitadas. Sinto que falta muito falar sobre as práticas pedagógicas, como é a ERER nos livros didáticos da Rede Municipal, como acontece essas formações continuadas, o quanto os docentes têm se aprofundado desses estudos. Agradecimentos Quero agradecer a oportunidade de estar finalizando um curso de graduação em uma universidade pública e de qualidade como é a UDESC. Se estou aqui hoje é por conta das cotas, e se permaneci nesse ambiente acadêmico é porque tive pessoas ao meu lado me fortalecendo sempre que eu pensava em largar tudo e desistir. Não levo isso como finalização da minha carreira acadêmica, ainda sei que consigo chegar mais longe. Agradeço aos meus pais, pois foram eles que participaram da minha formação como mulher, negra e futuramente uma pedagoga com garra e dedicação. Sem a ajuda deles acredito que não estaria tão bem assim como estou hoje em dia, 20 todo o carinho desde pequena, todo o mimo que eu tive eu posso dizer a eles que valeu a pena, e que eles fizeram um ótimo trabalho. Obrigada por existirem, obrigada por toda a dedicação, todo o empenho, todas as noites em claro quando eu estava doente ou tendo crises de ansiedade. Obrigada por todos os chocolates trazidos depois do trabalho. Obrigada mãe pelas impressões dos meus textos no início da graduação, obrigada pai pelas caronas de manhã até a universidade. E claro obrigada pelo melhor presente do ano, my little sister Isis (minha irmãzinha Isis). Quero passar a ela todos os ensinamentos que vocês me deram, e claro ser o refúgio dessa pequena quando o mundo estiver desabando, como vocês foram o meu. Quero agradecer imensamente à minha orientadora Camila Betoni, não sei o que seria de mim sem ela nessa elaboração de TCC. Um anjo que caiu de paraquedas na minha vida em 2021, fez eu ter vontade de voltar no tempo e querer ter tido todas as aulas possíveis de ERER ministradas por ela. Agradeço aos meus professores da graduação, mesmo tendo pouco contato por conta de ter vivido a maior parte da graduação na pandemia. Acredito que minha formação docente se dá por tudo que aprendi e que irei carregar comigo na minha atuação como professora. Por fim, e não menos importante, meus sinceros agradecimentos ao Núcleo de Estudos Africanos e Afro- Brasileiros - NEAB, que participou um pouco da minha trajetória acadêmica. Consegui participar ativamente de múltiplas oficinas, seminários e ações voltadas à Relações Étnicorracial. Obrigada de coração a prof.ª Maria Helena Tomaz, pela oportunidade e confiança. Após tudo isso, acredito que continuarei a seguir os passos do Caminhando com Antonieta de Barros. “Educar é ensinar os outros a viver; é iluminar caminhos alheios; é amparar debilitados, transformando-os em fortes; é mostrar as veredas, apontar as escaladas, possibilitando avançar sem muletas e sem tropeços…” - Antonieta de Barros MUITO OBRIGADA A TODOS! Com amor, Isabela Testoni Referências ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2021. p. 23 - 57 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC. 1996 BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. BRASIL. Lei 11.645/08 de 10 de março de 2008. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. 21 BRASIL.Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. 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